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“Quem conhece… meu verdadeiro eu? Meu verdadeiro coração¹?
Quem vê… meu verdadeiro eu? Eu vomito meu coração arrancado
Podemos ser companheiros?²”
¹ A tradução oficial colocou como “My true soul”, porém, como no verso abaixo ele continua a usar o coração, agora de forma menos metafórica, preferi manter assim, coração mesmo, pois nós temos uma visão metafórica de coração num sentido mais espiritual também. A questão é que o termo “kokoro” também pode ser traduzido como alma em alguns contextos e formas de ser escrito.
² A tradução oficial é “can I join you?” mas a frase em japonês fica muito melhor traduzida como “podemos ser companheiros?” e isso tem um peso muito diferente na música inteira, vocês entenderão melhor mais a frente.
Um começo misterioso e sombrio, a música começa devagar, com uma introdução sem vocais para colocar o ouvinte dentro da música, uma imersão total. Quando a voz finalmente surge é possível notar ruídos junto dela e um eco, como se ele não estivesse no mesmo ambiente que os instrumentos; como se ele fosse um ser que saiu desse mundo e está mandando uma mensagem. No próprio clipe é visto uma entidade a parte dos demais personagens, com uma máscara de mil faces sobrepostas (este é nosso Herói). Uma criatura que entendeu coisas sobre este mundo e agora está querendo ser seu companheiro (a Criança) numa jornada neste Mundo de Misericórdias.
“Enquanto nos tornamos íntimos, derretemos juntos
Os olhos brilham em branco¹.”
¹ No sentido de tornarem-se vazios, não exatamente de brilhar. No original japonês, inclusive, ficaria algo como “o branco dos olhos fica nublado”, mas a expressão da tradução original cai bem.
A música sofre uma pausa dos vocais para continuar no clima e então a voz retorna em um tom alto, forte, ainda acompanhada do ruído antes de entrar com a bateria e a guitarra mais forte novamente. O Herói conseguiu firmar a aliança com a Criança e, com isto, ambos saíram daquele mundo e entraram em transe, onde, finalmente, o mundo será revelado a todos.
Temos uma repetição da primeira estrofe, como se ele estivesse recrutando mais alguém ou apenas reforçando a ideia para a Criança. Ao final da repetição, no entanto, ocorre a primeira fúria do Herói, com um grito rasgado e monstruoso, como se o mero fato de encarar novamente aquilo o deixasse irritado, no entanto, ele se recompõe aproveitando um espaço de instrumentos e retorna com seus tons altos.
“Dando as mãos para reunir o mundo inteiro
Vamos apodrecer no futuro imprevisto”
A mensagem, no entanto, não é nada positiva e se perde num eco, deixando novamente os instrumentos criarem um clima antes do Herói voltar a conversar com a Criança. Então ele começa a contar sobre, aparentemente, uma nova personagem.
“Quanto mais íntimo me torno
Mais a solidão me ajuda a ver
Um palhaço dança loucamente e floresce¹
A flor é mesmo muito, muito bonita
É o jogo da vida…
O jogo… “
Em TIW vemos um Herói que se sente pressionado a viver pelos outros. Que até imagina ser capaz de ser uma voz ao mundo, mas percebe que é apenas uma pessoa que entretêm, exatamente como um palhaço. Aqui, embora o Herói tente se afastar, ele está falando dele mesmo. Ele dançou (viveu) até florescer, então ele debocha desse florescimento (que fora uma flor de ingratidão, a Ranunculus), explicando que isso aconteceu porque é assim que funciona “o jogo da vida”. É interessante como ele se coloca num papel épico ao erguer os tons de voz, contando a história como muito maior do que aparenta, mas quando fala da vida, diminui o tom novamente, e repete “o jogo” cansando-se até os instrumentos começarem a colapsar para o próximo passo da música, como se ele próprio entrasse em colapso só de pensar nisto.
Neste momento nosso Herói se apresentou à Criança (o ouvinte), contou uma história sobre si mesmo, embora não tão claramente, e firmou um contrato para ser tornar companheiro dessa criança. No clipe vemos essa figura de várias faces acompanhando singelamente uma criança cuja máscara (o tema do clipe é a mesma ideia do álbum, as máscaras que usamos) é rejeitada e sofre bullying. Porém, o que até então era uma forma de atrair esta Criança para mostrar como funciona “o jogo da vida” (a vida em si), vai, perto dos 5min da música (metade dela) se tornar uma forma brutal, nua e crua de revelar toda a verdade deste mundo.
Riffs pesados, baterias pesadas, o ritmo se acelerando gradativamente. O que soava melancólico e reflexivo agora fica explosivo e rápido.
“O mundo censurado
O mundo em que você vive
Isso mesmo, faça-se de cego
Este é você.”
A primeira metade dessa estrofe poderosa, com um vocal rasgado e veloz, é literalmente empurrando a epifania necessária para enfrentar o coletivo e se individualizar. O mundo censurado pode ser traduzido como “o mundo em mosaico”, criando uma abrangência no sentido; no Japão é comum a pornografia ser censurada com mosaicos, podendo representar que o mundo é tão “sujo” e tão “nu e cru” que está censurado na visão da Criança. Ele então mostra como a Criança (ouvinte) tem se feito de cego para este mundo, que isso é típico da Criança — uma boa crítica de como vivemos nesta sociedade e ainda assim, fingimos não ver tantas coisas controversas, mas ainda mais direcionada aos japoneses que seguem como se este sistema coletivista fosse o melhor para todos.
“Puxando os cantos da boca
Se envolvendo em violências para se sentir vivo
O mundo de repressão¹”
¹ Na tradução oficial diz coerção, mas repressão fica melhor.
Continua na estrofe, o Herói parece fazer uma alusão aos falsos sorrisos com o puxar os cantos da boca. Como se a Criança fosse incapaz de ser feliz de verdade, precisando se envolver em violência (contra os outros? Contra si mesmo?) para se sentir verdadeiramente vivo e, por fim, ele completa com um rasgado poderoso chamando essa verdade de “mundo de repressão”; pois é este o mundo que ele finge não ver, mas já enfrenta e vive todos os dias. Um mundo em que ele é reprimido, em que ele não consegue mais encontrar a razão de viver ou como ser feliz. Este é o mundo que vivemos…
“O mundo da misericórdia
Hipocrisia!”
Um mundo onde as pessoas sentem pena, são misericordiosas e se afetam ao encontrarem uma notícia horrenda, mas não passa de um mundo cheio de hipocrisia em que as pessoas só fingem terem misericórdia; só fingem se importar. Tanto com a sociedade num contexto geral como com elas mesmas. Pois, refrescando a memória, o contrato social oriental, em especial no Japão, não é de individualização, mas de coletividade — por lá, você vive pelo coletivo, não por você.
É uma grande hipocrisia dizer que é um sistema misericordioso onde as pessoas funcionam para ajudar as outras quando, na verdade, este sistema devora as pessoas e fazem elas fingirem para elas mesmas em troca de se sentirem úteis.
Mais um espaço sem vocais, com mais foco na bateria e guitarra, até entrar no piano com a vibração da guitarra. Vale notar que neste momento, de fundo, se misturando, é possível notar um trecho (sample) retirado direto de Ranunculus como som ambiente, criando a conexão citada anteriormente: a flor de ingratidão desabrochou e agora está falando sobre a verdadeira face do mundo, embora, para isso, o Herói tenha que se esconder debaixo de outras várias faces como visto no look do Kyo para o single e também como ele mesmo cita em Zetsuenai.
“Eu me libertei e pisei naquela mão enquanto ela me manchava
A mão emaranhada em compaixão¹”
¹ Eu inverti os versos, pois assim fica mais forte a ideia.
O Herói explica que se libertou dessa falsa compaixão, da mão da sociedade sobre ele, e pisou nela enquanto ela continuava tentando manchá-lo, uma forma de mostrar como a jornada dele em TIW não foi apagada, mas essa é a forma final dele*, depois de sofrer tanto e florescer. Em outras palavras, ele resistiu e sobreviveu. Ele conseguiu não se tornar uma parte integral do sistema, o que encaixa mais no uso do vocal com ruído de fundo e do clipe, onde a entidade parece basicamente ser de outro plano.
A música volta a ficar sem vocais e os instrumentos retornam ao começo da música para então ele voltar a falar de dar as mãos para unir o mundo e apodrecer num futuro, mas continuando com…
“Nascido em liberdade
Escravizado em liberdade
Neste mundo…”
Ele mostra como nós nascemos nesta falsa liberdade, esta liberdade que nos escraviza, esta mão que nos limita a termos uma visão hipócrita, a não vivermos por nós mesmos. Ele canta isso trêmulo, alto, e ao citar o mundo, a fúria aflora novamente. É como se o Herói tentasse mostrar como o ciclo da vida é de falsa liberdade e isso é aterrorizante, é um sofrimento constante, mas segue com um gutural pesado de guitarras ainda mais raivosas ao falar.
“Posso até parecer ingênuo¹
Sangre
Você está vivo
Encontre sua liberdade.”
¹ A tradução oficial diz “eu não ligo de parecer um tolo” e em japonês algo como “pode até ser inocente”, achei melhor a tradução de “posso até parecer ingênuo”, pois nos mostra uma nova perspectiva do Herói.
Neste ponto da música, deixando sair toda sua frustração e usando um gutural bastante pesado, ele se aproxima da Criança e fala que talvez ele soe ingênuo, algo esperançoso, mas a Criança está viva, ele a manda sangrar como uma forma de lhe comprovar que sim, ela está viva, então ela tem o direito… o dever consigo mesma de encontrar a sua liberdade — o que a faz feliz, não o que a sociedade espera dela, não o que falam que ela precisa fazer.
Por fim, após essa conclusão, ele joga um falsete crescendo, criando um clima mais puro como se aquilo fosse a catarse necessária, mas finaliza definitivamente com um grito que se apaga antes do coro voltar a falar do mundo — o coro, neste momento, é como a sociedade cantando coletivamente sobre o mundo que o Herói quer que a Criança aprenda a sobreviver.
Durante os próximos 22 segundos a vibração dos instrumentos vão acabando e deixando apenas o vazio tomar conta.
***
The World of Mercy, para Kyo, é “a forma final do álbum”, não exatamente “uma continuação” e dá para entender o motivo. Aqui o narrador-personagem passa pelas mesmas complicações do álbum, mas finalmente conseguindo transmitir isso de uma única vez, em todas as suas nuances. O uso do coro no fim é genial, pois passa exatamente a ideia da coletividade da sociedade japonesa e como, até o fim, isto ainda tentará lhe agarrar; por isso ele, ao fundo, grita. A grande mensagem, tanto do álbum quanto do single, é de que este sistema onde apaga-se o indivíduo em prol do coletivo é errado, é ruim, é ele que está causando tantas mortes, tantos problemas — taxas de suicídio, identificação com músicas de automutilação, etc. Com mais 10min a banda tenta lhe convencer disso e abrir seus olhos para a necessidade de enfrentar este sistema opressor, afinal de contas… você está vivo.
Essa foi uma análise de GOGUN.
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